Audiotexto
Quando começamos a fazer esse texto nos impusemos uma restrição, mesmo sem saber, para que o texto trouxesse certezas. Ele se iniciou estritamente descritivo, e para falar a verdade, estritamente morno. Ainda não tínhamos acertado a nossa busca. O objetivo era compreender o que é moda e arte 101 anos após a Semana de 1922 – esse momento tão emblemático na história da arte brasileira. Começamos a discutir o que mudou nesse tempo em termos de contextos e intuitos, relacionando os processos da imagem e, mais ainda, os ESPAÇOS de produção e circulação de imagens, fazendo essa ponte temporal entre a Semana e o que vem sendo construído até 2023. Em vigor, vivenciamos uma hiperconectividade em que o espaço físico e digital coexistem nos processos de produções artísticas. Um agente de interação entre esses dois lugares tem sido a Inteligência Artificial, que possibilitará uma espécie de antropofagia online e offline, como aprofundado ao longo do texto.

Entrevistamos, trocamos e aprendemos com vários profissionais citados nesta matéria, a fim de entender mais os processos de Inteligência Artificial e essas tecnologias envolvidas nas produções visuais. Forçando uma reflexão crítica sobre o assunto, ela só veio quando começamos a, de fato, construir as redes com aqueles que entrevistamos. Nisto, houve um ápice em um evento particular com o nosso parceiro Lua. Antes de falarmos da situação ocorrida, vamos contextualizar esse trajeto. Sem respostas prontas, já que, afinal de contas, a ideia é abrir mais janelas e explorar mais dúvidas.
Sobre espaços
Falamos aqui de espaços físicos, temporais, de acesso e de formação de identidade. Relacionando os três pilares: moda, Semana de Arte Moderna de 1922 e inteligência artificial, encontramos o ponto de convergência justamente nos espaços: que espaços foram e estão sendo esses? Quem transita neles? Como são as produções nestes lugares e como elas são recebidas?
Pensando na Semana de Arte Moderna, que acontece no mês de fevereiro de 1922 e habita o Theatro Municipal de São Paulo, destacamos que aquele finito e escasso círculo social, em um evento elitista, diz respeito a um sistema fechado, institucionalizando o que será validado na arte para ocupar aquele local e momento.
Mas diferente da Semana, atualmente não precisa haver um espaço físico de legitimação para que as vozes desses artistas sejam anunciadas e proclamadas por eles mesmos. Mais do que esperar por um grande evento, há imagens brasileiras em 2023 que se concretizam em diversos momentos que coexistem em uma rede, nas minuciosidades de diversos contextos.

Potencial de democratização, dependendo de como entendemos (e se entendemos) as tecnologias
O digital nos parece então apresentar a POSSIBILIDADE de democratização a partir de mais territórios para habitação dessas imagens e artistas, mas não nos garante uma democratização. E é a partir daí que nos encontramos em uma encruzilhada.

Lua Damasceno, 2023
Entrevistamos no dia 28 de março o pesquisador e artista visual Bruno Moreschi e perguntamos a ele se as novas tecnologias podem auxiliar a democratizar obras e produções de artistas que foram invisibilizados e são invisibilizados no meio da arte. Sobre isso, Bruno diz que “Existe uma potência e acho que devem existir em muitos projetos e ações que acontecem nesse sentido. […] O que eu acho é que esse processo que você está falando é possível sim em teoria – que a tecnologia pode ajudar a aumentar um pouco a diversidade, expressões artísticas no compartilhamento de ideias, etc. Isso é possível. Acho que tá na própria lógica de redes. Agora, o que eu acho que a gente tem que assumir é que isso não significa dizer que a partir das ferramentas comerciais que a gente tem hoje, é assim que isso vai ser feito. Acho que não vai ser.”
Bruno aponta que não podemos esquecer que usamos ferramentas comerciais nessas conexões [digitais] e que estas ferramentas têm fins comerciais. “[…] no fim das contas, se você for pensar quando você abre seu Instagram, você tá todo dia consumindo coisas muito parecidas. Todos os dias, inclusive, vendo as mesmas pessoas. Então […] o quanto isso é diverso? Não é nem um pouco diverso. Aliás, é o contrário, […] criam-se bolhas, criam-se feudos de certeza onde a certeza habita ali e legitima ela mesma. […] Então essa possibilidade [de viabilizar a democratização de produções artísticas] existe, mas ela não vai ser entregue pelas empresas; pelas BigTechs. […] A gente vai ter que pegar essa ferramenta e transformá-la. Para isso, a gente vai ter que quebrar esse código e construir uma outra coisa”.
Então, lendo esse cenário na interação humanos e I.A. e o que construiremos a partir dessa relação, entendemos que é necessário colocar uma luz sobre algo que não pode ser ocultado. Se não dimensionarmos os processos das tecnologias que usamos – antes, durante e depois de usá-las – então o que estamos construindo e para quem?
Lembrete: as potências tecnológicas vêm das potências humanas
Refletir sobre o que sustentamos e o que consumimos nessa grande rede é, portanto, não sucumbir ao que nos foi predestinado – alienação pelos processos tecnológicos que podem controlar as nossas subjetividades. Para entender mais sobre esses processos que tomam partes da nossa vida – qual é a fonte dessa fonte de pesquisa (I.As) -, perguntamos a Moreschi sobre com quem a inteligência artificial está aprendendo: “[…] ela é alimentada e treinada por dados que a gente produz de alguma maneira. […] Por um lado, os dados que treinam a I. A. são um pouco reflexo da nossa sociedade. Por outro lado, isso é uma verdade, mas também não é uma verdade absoluta porque esses dados que estão treinando I. A. são dados, sim, que fazem parte da esfera social, mas ela […] não dá conta de toda a sociedade e não dá conta da multiplicidade das coisas. […] Nós temos muitos dados na internet, mas ao mesmo tempo a gente tem um problema muito sério de representatividade nesses dados. […] Por um lado, é um pouco reflexo do que a gente é, incluindo até a exclusão de muitas das vozes e de muitas das opressões que não são legitimadas por essa mesma sociedade que a gente faz parte. Então o problema dela é também um pouco o problema do jeito que a gente construiu essa sociedade.”.
O futuro e o passado são ensinados hoje
Assim como provavelmente Oswald, Mário, Anita, entre outros nomes, não sabiam que estariam formando uma semana que duraria 101 anos e contando, como instiga Fred Coelho em “A semana de cem anos”, atualmente não sabemos quais parâmetros estamos criando e quais são as consequências do que está sendo gerado e da forma que está sendo gerado para o futuro, seja da arte, da moda e da humanidade em si.

Estamos vivendo em uma pluralidade com milhares, senão milhões, de mini universos artísticos, com códigos e referências em si mesmos. Criamos futuros, no plural, a todo instante, a partir do presente que existe, ao mesmo tempo que criamos outras possibilidades de passados, presentes e futuros para serem encontrados. Mas de onde vem a necessidade de criar e habitar essas possibilidades de universos? Ao pensarmos quais têm sido essas atmosferas, dentro da produção de imagem via I.A., percebemos como temática constante a reimaginação de passados bem como a visualização de futuros utópicos e distópicos. As inteligências artificiais facilitam a criação desses universos que há tempos estamos tentando construir à base do desprendimento da nossa realidade cotidiana – as I.A.s são em si um cosmo novo a explorar.
O fotógrafo e designer imagético Cassio Meireles (@cassiussssss no instagram) conversou conosco em entrevista sobre as possibilidades para o futuro da arte a partir da inteligência artificial. Cássio recentemente criou uma série de fotografias geradas em I.A chamada “The future running to the left’’, e nos contou sobre algumas repetições que encontrou pelo caminho:
Existem padrões que se repetem, na própria expressão das pessoas nas imagens geradas. Já pensei sobre esse lado filosófico; sobre as I.As representarem expressões mais tristes, vazias. Nada mais representa o que é de mais atual: as pessoas estão mais tristes, tirando menos fotos sorrindo. […] Óbvio que você pode colocar nisso muita interação! Meu irmão uma vez falou ‘nossa, mas ninguém sorri?` Aí eu falei “ah não, agora eu preciso fazer uma imagem de alguém sorrindo’’.




Entendemos então que estamos em um fluxo em que a I.A. é um sintoma da sociedade, mas construímos nela também a nossa ideia de sociedade. Cássio conta que também teve a vontade de não retratar cenários solitários, e por isso todas as personagens estão em duplas, casais, nunca sozinhas; toda composição de imagem pensada para não construir imaginários coletivos que visualizam um futuro pessimista.
Na construção da realidade dentro das Inteligências Artificiais como espelhamento da realidade fora delas, vale o questionamento: do que vamos alimentá-las para nos alimentar?
Experimentações: buscando representações e repetições na I.A.
A fim de entender esse processo entre “com o que alimentamos a inteligência artificial e o que ela nos dá a partir disso”, tivemos contato com o designer imagético e fotógrafo Lua Damasceno, que topou estar conosco para gerar imagens via I.A., de forma experimental e dentro de sua identidade artística, nos expondo quais foram os caminhos traçados para a geração daquela imagem. Por caminhos, entende-se os prompts, que são os comandos imputados durante o processo criativo das imagens, e que geram dados imagéticos para o usuário. As plataformas de inteligência artificial utilizadas durante os experimentos foram Midjourney e o DALL-E.
De início expusemos a pauta da matéria.
Trouxemos à superfície o exercício de imaginação de espaços onde a arte é produzida e quem são as figuras humanas que os habitam.
Em seguida, fomos apresentados a imagens que iam de uma percepção abstrata dos termos imputados por Lua a imagens que nos pareciam conter relações curiosas e equivocadas acerca do assunto.
A situação [colocada no começo deste texto] que nos atravessou e tangibilizou para nós a relação de I.A. com sociedade acontece nesse momento.
Iremos inserir na íntegra o relato de Lua:
fotografia de médio formato de 1990 ultra realista com os conceitos básicos da realidade brasileira e como o mesmo branco acumula todo o poder retirando a vertente real do país”
prompt infelizmente escrito. Talvez de forma forçosa para que a inteligência nos mostrasse uma faceta sua tão humana – não será mostrada aqui. Os processos que envolveram o visualizar dessa imagem acessaram partes sombrias e a única coisa que causou foi dor. Imagem nítida e com todos os detalhes de forma e cor, puderam representar o apagamento de história do povo preto pelo sentir de superioridade dos branc*s. ^Um retrato em médio formato com um busto negro vestindo regata simples de cor clara, ao fundo 3 cores em listras. o rosto? branco. A realeza básica (rosto //genérico) com todos os aspectos comumente associados à nobreza. Os cabelos loiros se envolvem num movimento de coroa, há certos pontos de brilho misturados ao fio. A expressão contempla paz, uma livre expressão de não culpa. Os cuidados e os acessos estão à frente do rosto, o rosto acima do corpo. A inteligência beirando o infantil sobrepôs um fato de forma visual. Usou a literalidade pra dar forma. Até onde ir? Guiar a criar o onde as palavras se fazem mais pela falta? Descrevo esse texto com confusões e incertezas se os métodos fazem sentido dentro dessa AI e dentro dessa rede onde criam e dizem ter lugar. Busco muitas vezes pela escassez no sentido para que a lacuna seja o ponto principal de uma obra. (Desvinculando este final com a problemática da imagem que descrevi acima). Ódio.”
Paramos e olhamos a questão. Decidimos conjuntamente não expor a imagem gerada, que por artifícios visuais espelha algumas relações de imagem e poder que possivelmente permeiam o imaginário coletivo ainda hoje. O experimento foi necessário para a construção de algumas visões mais realistas e palpáveis sobre o uso de I.A. para a criação de imagens. Não expusemos a imagem gerada pois acreditamos que esta nem deveria ter sido impressa da forma que foi pela Inteligência Artificial. Mas, com tal processo, é válido dizer que as plataformas de geração de imagem via inteligência artificial têm se mostrado expoentes no estudo dos reflexos da sociedade no que tange a imagem humana. Estamos vendo humanos usando máquinas para retratar humanos, e isso nos diz mais sobre nós do que sobre as máquinas, por mais que o espaço digital permita a produção de imagens fantásticas (no sentido de fantasia), não está descolado das estruturas da realidade.


O Modernismo foi um toque de alarme. Todos acordaram e viram perfeitamente a aurora no ar. A aurora continha em si todas as promessas do dia, só que ainda não era o dia.” (ANDRADE, 1972, p. 189, apud COELHO, 2021, p. 32)
101 anos e 101 dias após a Semana de Arte Moderna de 1922, nos preparamos para o próximo dia.
