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É fevereiro de 1942, 20 anos depois da Semana de 22, Mário de Andrade – um dos principais nomes do movimento – escreve a série de colunas “O Movimento Modernista” para o Estado de S. Paulo, colocando com maturidade brutal o último prego no caixão do movimento modernista paulistano: “Nós não podemos servir de exemplo pra ninguém, mas podemos servir de lição!”.1https://aterraeredonda.com.br/o-movimento-modernista/ sobre o texto O Movimento Modernista, de Mário de Andrade.
Nas colunas de 1942 Mário já ressalta as incoerências do movimento.
O modernismo no Brasil foi uma ruptura, foi um abandono consciente de princípios e de técnicas, foi uma revolta contra a intelligensia nacional. É mais possível imaginar que o estado de guerra da Europa tivesse preparado em nós um espírito de guerra. E as modas que revestiram este espírito foram diretamente importadas da Europa. Quanto a dizer que éramos antinacionalistas, é apenas bobagem ridícula. É esquecer todo o movimento regionalista aberto anteriormente pela Revista do Brasil primeira fase, todo o movimento editorial de Monteiro Lobato, a arquitetura e até urbanismo (Dubugras) neocolonial aqui nascidos. Isso sim eram raízes engrossadas desde o início da guerra. Mas o espírito e as modas foram diretamente importados da Europa.”.2 https://outraspalavras.net/poeticas/o-movimento-modernista-20-anos-depois/ texto O Movimento Modernista, de Mário de Andrade.
Lá, ele já notava o que vem sido notado neste centenário passado, inclusive nesta primeira edição da Relativa; já falava sobre o perfil aristocrático e, portanto, completamente impopular da Semana de 22, bem como do caráter exclusivista de um modernismo somente paulistano; de integrantes cujos “[…] nomes acabam onde a cidade acaba […]”.
Então por que vivemos cultuando esse movimento e tratando-o como a síntese da arte e do movimento modernista brasileiro?
Eu digo à leitora, nessa introdução: pelas inconsistências de uma historiografia branca, sudestina e teimosa. Uma historiografia que, a partir de 1945, com uma série de autores presos a documentos encontrados em São Paulo – medalha de (des)honra a Lourival Gomes Machado –3* Podcast 451 MHz, #58 “A Semana de 22 posta em questão” https://www.quatrocincoum.com.br/br/podcasts/repertorio-451-mhz/a-semana-de-22-posta-em-questao , vem se retroalimentando até chegar em 2023, 101 anos depois desse exagero farsante, numa revista digital colaborativa sem fins lucrativos.
Por que, Relativa? Por quê?
Para que talvez possamos colocar um ponto final nisso tudo. Para que não precisemos voltar a tratar do movimento hiperbolizado, reprodutor de problemáticas que queria tratar – fácil perceber como a inflação dos artistas de uma aristocracia branca apagou todo o resto da cena modernista no Brasil, que, como aponta Bruno Albertim em Pernambuco Modernista, trazido aqui nesta edição por Serena, já existia antes da Semana, tanto quanto ou até mais potente, mais consolidada e mais revolucionária, porém, longe demais do eixo paulistano para ser notada. Nessa análise documental feita em São Paulo como o único mundo que existe no universo brasileiro, Lima Barreto (1888-1922)4https://www.google.com/amp/s/www.correiodopovo.com.br/cadernodesabado/apagamentos-da-semana-de-1922-1.769684%3famp=1 Os Apagamentos da Semana de 22 | Correio do Povo & https://www.google.com/amp/s/www.cafehistoria.com.br/lima-barreto-e-os-modernistas/amp/ sobre Lima Barreto e seu apagamento do modernismo. – carioca preto e pobre, que, ao contrário de Macunaíma, morreu como tal -, grande antagonista da Semana e apagado do modernismo pela historiografia, e Lino Guedes (1897-1951), escritor também preto e deletado do movimento pela historiografia, simplesmente não existem no modernismo brasileiro!5https://pcb.org.br/portal2/28411 modernismo e a fundação do PCB em 1922.
Essa inflação do modernismo escondeu os personagens periféricos – e então a Semana de Arte Moderna da Periferia de 2007, organizada pela Cooperifa, com manifesto escrito por Sérgio Vaz, elaboram essa reparação – mesmo que ainda voltando à exaltação do movimento, mas buscam essa reparação. Fato é que os personagens periféricos também faziam o modernismo na época, e não foram lembrados nem trazidos à tona; foram apagados pelo exagero.
Essa é a crítica e o ódio emanado pelos(as, es) colaboradores desta edição. Esta Relativa, alimentada pela relatividade entre os olhares dos colaboradores acerca da Semana, ora enquanto movimento artístico, ora enquanto movimento político e social – e então problematizado -; o ódio de Nala Black Trava ao desejar que se fodam os modernistas e seu movimento excludente e de Denilson Baniwa ao pintar a cabeça de Mário de Andrade servida num banquete não é apenas ódio. Não é apenas raiva que nutre nossa crítica. São dores que percebemos sentir graças a esse tipo de ação histórica.
Portanto, escolhemos 101 anos posteriores em vez de 100 porque não é uma comemoração. Não é uma memoração, e sim uma análise crítica e continuada. Se fosse 100 anos, seria relembrar; 101 é seguir em frente. Por isso escolhemos esse tema para a primeira edição desta revista digital que aborda temas políticos e culturais: essa edição é uma finalização neste mito que é cultuado como se tivesse a importância que dizem ter. Ele foi um mito institucionalizador.
A escolha do Theatro Municipal de São Paulo não foi à toa; a influência e o financiamento de uma elite latifundiária e cafeeira – essa a qual a Relativa se põe contra, pois são os sugadores dessa terra, desses povos e desse espírito. Paulo Prado, segundo o próprio Mário de Andrade no texto já citado: não haveria Semana sem Paulo Prado – filho de um ex-prefeito na época e cafeicultor e latifundiário, como seu pai. Foi Paulo Prado quem arranjou os sócios e boa parte do dinheiro necessário para que fosse realizada a Semana de 22 – até mesmo no aluguel do Theatro Municipal, que não era barato. A “Semana revolucionária”, portanto, foi palco não só de artistas ridicularizados pelo eugenista Monteiro Lobato6A eugenia é a seleção dos seres humanos com base em suas características hereditárias com objetivo de melhorar as gerações futuras, que embasa teorias racistas no cenário científico do século XX – Monteiro Lobato era adepto de boa parte dessas teorias., mas também de um interesse certeiro da elite do café de São Paulo: tornar o estado, por meio desse evento, um polo cultural que superasse o do Rio de Janeiro.
Sim.
A Semana foi, além de tudo, instrumento de manobra das elites latifundiárias e ufanistas de São Paulo. Por isso o interesse em se institucionalizar este evento de proporções falseadas.
Ninguém pensava em sacrifício, nenhum se imaginava mártir: éramos uma arrancada de heróis convencidos, uns hitlerzinhos agradáveis.”, Mário de Andrade nas colunas O Movimento Modernista, de 1942.
Abordamos nesta edição também temas que transcendem a Semana de 22 e vão mais ao encontro do modernismo em si – como o texto de Giovanna Gaba e Lucas Okuda, sobre as inteligências artificiais no contexto da moda brasileira; o meu, sobre a linguagem e a língua como ferramentas de dominação ocidental e de superação antropofágica; o de Yuri Novaes, sobre o desenvolvimento urbano de São Paulo como analogia à colonização espacial dessas terras, etc. Alguns, é claro, mantém o foco na Semana, como o de Eduarda Tavares, que põe em questão os corpos que participaram e que não participaram, não só do movimento artístico, mas do jogo antropofágico e, em última instância, da arte brasileira; Isabelle Bulla também trás o papel dos influencers digitais e as influências da antropofagia no cinema nacional, enquanto Serena faz isso na literatura em prosa e Anna Cristina na poética e, Lucas Lima, na música popular brasileira e nos seus movimentos.
Deixo esse final da introdução para esclarecer o papel da Relativa e nossa intenção enquanto grupo colaborativo: relacionar aspectos e conceitos para tentar entendê-los; relacionar pessoas e seus trabalhos em uma edição repleta de perspectivas que, sejam elas das mais múltiplas, não violem nossos compromissos sociais, políticos e culturais enquanto grupo.
Espero, sinceramente, que o conteúdo possa vir a calhar à pessoa que lê e ouve esta revista; que se divirta e se questione. Bem como espero que os colaboradores desta edição possam se deleitar com o seu trabalho.
Grato,
Gabriel F.S
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Hoje, em 25 de maio de 2023, marcam 101 anos e 101 dias da Semana de Arte Moderna de 1922.
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Autor(es)
Cursa jornalismo na FAPCOM (SP) pelo ProUni e trabalha na área de comunicação desde 2019, se move em prol da luta socialista. Gabriel também é escritor de microcontos no projeto Minimacontos e de contos fantásticos no projeto Universo Expandido Odyssey - Experiência Odyssey. Também tem trabalhos musicais lançados no YouTube, Spotify Deezer e todas as plataformas - nos gêneros de Novo MPB e Rap, uma de suas fontes de consciência de classe mais longevas. Estudante de escola pública por toda a vida e morador da Zona Norte da capital paulista, Gabriel vê a comunicação como uma ferramenta de luta política e social, e então surge a Revista Relativa - uma revista digital e socialista. F.S é de Ferreira da Silva.