101 anos e 101 dias depois, e ainda tenho a convicção: quero que se foda a semana de 22.
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Sim, a Semana de Arte Moderna, também chamada de Semana de 22; aquela que aconteceu em São Paulo, entre 13 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal. Mas muito mais que isso, eu quero que se foda o que ela representa. Eu compreendo a importância que ela teve e tem, mas em 2022, acho que deveria ser um consenso que isso deveria ser ultrapassado; que, para além dessa “estética brasileira”, pensada pela elite artística – em especial BRANCA, CIS, HÉTERO e não menos importante, SUDESTINA, em sua maioria – para representar o Brazil (com Z e não com S), ao mesmo tempo que são passado, deveriam ser ultrapassadas, exatamente por serem muito fielmente o presente.
Ao passo que penso na contradição que é o modernismo nesta conjuntura, que produzia a representação de um “Brasil” em terceira pessoa, na minha perspectiva, como um fotógrafo da BBC em um país africano, ou não tão longe daqui, como Sebastião Salgado é hoje; assim eram os artistas da elite retratando um país que não viviam de verdade. Fica aí a questão: como um país calcado na história preta e indígena, na dor preta e indígena, no choro preto e indígena, construído por mãos pretas e indígenas, tem como expoentes e referenciais da cultura (exportação) ‘’gente branca’’? E sei, sei que há Mário de Andrade, fundamental para que houvesse a semana de 22, um exímio poeta, contista, cronista, romancista, musicólogo, historiador de arte, crítico e fotógrafo e que por acaso sempre falta em sua descrição que era preto, e que também havia Anita Malfatti, como representação feminina (sempre apenas parando na representação; desde aquele momento, a representatividade servindo como pula-pula e não como trampolim1Menção à Linn da Quebrada e o que ela desenvolve sobre o problema da representatividade.), mas que por sua vez, cumpre a regra de uma série de privilégios sendo uma branca ítalo-brasileira, etc.
Inclusive, a presença de mulheres, Anita Malfatti e Tarsila do Amaral no modernismo brasileiro, é visto como um desafio às teorias de gênero (mesmo com os percalços de suas trajetórias), por não ser trivial a presença de mulheres no contexto de vanguarda artística, seja qual for. O mais próximo que encontramos é a Frida Kahlo no México, mas que também tem uma relevância tardia, pois começa a ganhar maior relevância nos anos 30, e o
modernismo mexicano já vinha se desenvolvendo desde os anos 20 (com protagonismo majoritariamente masculino).
Perceba, quando pontuo em todo esse panorama, os abismos entre a representação de gênero, sempre é por uma ótica binária, um olhar bem cis, como é de costume por aqueles que escrevem – ou melhor: ditam (da raiz ditatorial) a história, e remontam trajetórias apagando narrativas, as vezes por ignorância, por vezes pela falta de humanidade e caráter, comum aqueles que geralmente contam as histórias ocidentais, porém, por qualquer meio, o resultado é de censo comum: vozes caladas.
Se de tal maneira, o Brasil esteve à frente e leva como um orgulho nacional, essa fresta, essa rachadura, a fissura no sistema de gênero em 1922, trago comigo essa sugestão ao plano nacional de futuro, que sejamos novamente essa vanguarda, que novamente sejamos lembradas pela história, enquanto pátria desafiadora de gênero, ou melhor dizendo, enquanto uma ‘’Mátria desafiadora de gênero’’. E quando digo sugestão, digo com um tom bem cordial, pois caso neguem, sinto muito, já estamos povoando os espaços, o que estamos de fato pedindo é que se retirem, para que seja menos dolorida a passagem.
O olhar hodierno, que anseia por uma Mátria mais inclusiva no que diz respeito ao gênero, vem de outras vozes, não apenas de um feminino cis, mas também de todo um leque amplo de gêneros. Os homens cis e brancos dominaram a arte, como em todos os outros âmbitos da vida europeia pré-colonização e imperialismo, e nos âmbitos globais após esses crimes a vida, por essa razão, em geral, os estudos de arte e gênero, giram entorno desta temática chave: a exclusão da mulher cis branca -obviamente não posto dessa forma, mas exatamente sobre essa problemática-, estudos que investigam os porquês delas não acessarem esses espaços de relevância, sobre o porque de quando citadas na arte, serem na maioria das vezes como temas, como musas inspiradoras e peladas e raramente como produtoras de suas próprias potências, quais mecanismos do sistema produzem essa exclusão?
Olhando por uma perspectiva ‘’desbinarizada’’, conseguem perceber essa espiral? Esse retorno a mesma problemática de formas diferentes? Ainda estou trazendo a mesma problemática, porém incluindo outras narrativas, quero entender coletivamente, quais mecanismos do sistema produzem a exclusão de vozes, intelectualidades, corporalidades pretas, indígenas, intertransvestigenere, porque nós, quando somos colocades em espaços de arte visual, sempre é como tema, como inspiração e por muitas vezes pelades?

Com esses questionamentos em mente, vamos juntes pensar, o que em 2022, uma Artista contemporânea brasileira, no caso, travesti, negra, de ascendência indígena, tem a dizer sobre a Nossa semana de arte moderna.
Em primeiro lugar queria dizer que só minha existência como artista já é motivo pra lista dos envolvidos em 1922 morder as costas2“Morder as costas” é uma gíria, que segundo o Dicionário Informal, significa “Quando você está infeliz com algo, mas tudo o que fizer para mudar aquilo, será em vão.” (https://www.dicionarioinformal.com.br/morde+as+costas/). O Brasil sempre foi visto como cordial, como democrático, como diplomático, e a própria semana de 22 reforçou muito desses esteriótipo, todo esse contexto histórico, queria inventar um Brasil para o exterior – em especial pra Europa – que não existia, Casa-Grande & Senzala3Casa-Grande & Senzala é um livro do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre publicado em 1933., que trás a tona o mito da “Democracia Racial” é de um pouco depois (1933), mas esse país nunca existiu, Nóis que é preto, que é pobre, pras travestis, para os povos originários… pra nossa gente, nunca chegou essa cordialidade, essa democracia, até porque nunca chegou muita coisa mesmo. E agora, que estamos ocupando os espaços, que estamos sonhando, que estamos ganhando um pouco mais de dinheiro (apesar de na prática, ser mais acesso a crédito e não a dinheiro de fato), não chegamos sendo cordiais, aliás, não foi pedindo licença que cheguei até aqui4Citação à música Abre Caminho de Baco Exu do Blues.. Por isso que nosso povo ocupando esse espaço, sempre vai ser um incômodo, porque chegamos nos espaços e queremos mais, mais não só pra mim, mais para todos nós, vamos subindo e puxando os que estão ao redor, “mil pra você, mil pra mim”5 Citação à música 1 por amor, 2 por dinheiro dos Racionais MC’s.. Isso revolta quem sempre esteve lá, “como assim tem preto no aeroporto?”, “como assim, tem música de pobre falando de grife?”, “como assim tem preto no museu?”, “como assim, tem uma preta escrevendo sobre a semana de arte moderna?”.
Tem um post de um dos mais importantes pintores brasileiros da contemporaneidade, Maxwell Alexandre, que pontua algo muito relevante, que acredito que seja engrandecedor para essa reflexão, nele diz:
no dia da consciência negra, deveriam ter feito uma exposição coletiva de brancos, onde a abordagem fosse privilégio branco. tenho aqui algumas sugestões de títulos: qual o problema e as aspirações do artista branco? brancos: vida, aspirações e problemas. como que o identitarismo branco criou o bolsonarismo? esse lugar na arte existiria para mim, homem branco, sem eu ser herdeiro? todos esses pavilhões ao redor, existiriam sem minhas relações íntimas branca? Como artistas brancos continuam se beneficiando do racismo. O teatro do homem branco é inhotim.”6Post feito pelo próprio no Instagram @maxwell__alexandre no dia 02 de dezembro de 2022.

2021, Foto: Divulgação
E fica então a questão, para que e para quem a arte brasileira contemporânea é produzida? Quando falamos de arte brasileira, de qual Brasil estamos falando?
Andy Warhol dizia q ser artista era produzir coisas que as pessoas não precisam.
Enquanto a arte preta, a música preta, o samba, o funk, o rap, o blues, acalentarem, acolherem, ensinarem … Te digo, me salvaram e salvam todos os dias e até minha própria arte, quando penso que tudo se acabou, continua aqui. Te digo, poucas coisas eu preciso tanto quanto a arte.”7Citação à um trecho de minha própria poesia “Sobre a nudez forte da fantasia, o manto diáfano da verdade”.
Pessoalmente, comecei por necessidade, e até hoje, os momentos mais desconfortáveis, são os que mais produzo, depois veio a vontade de representar e fazer história, mas a vontade já veio com a realidade, pois sei que já venho representando e fazendo história (novamente, não quero fazer da representatividade um pula-pula, mas sim um trampolim), mas na materialidade das coisas, junto com tudo isso quero é fazer dinheiro. A nossa arte é de “Nóis pra nóis”, por necessidade, mas assim que possível, por dinheiro, porque sabemos da nossa potência, se não fossemos incríveis, não teriam brancos daqui e do exterior nos copiando, ou melhor, nos roubando constantemente.

Mas em especial, essa discussão urge que se faça agora, pois estamos em um momento mister para a produção cultural. O Brasil nos últimos anos tem se tornado uma referência na influência e caminha a passos largos para se tornar o centro da produção cultural global, mesmo com os cortes nos incentivos públicos, dominamos as redes sociais e povoamos a internet com nossa cultura. Os gringos nos consomem e mesmo que tenham um olhar dúbio, por vezes de zoológico, por vezes de admiração, no final querem nos roubar. Pegar o nosso beat de funk e colocar na música deles e não nos chamar para tocar lá, pegar nossa estética e replicar sem dar créditos. Já vimos isso acontecer antes e se chama semana de arte moderna. Não vamos deixar que isso ocorra de novo, não precisamos que ninguém conte a nossa história, é pra isso que tenho voz.
Não me entenda mal,
amo sua arte branca…
mas to cansada de não poder contar minha história (ou contar e ngm
conseguir ouvir);
Não entenderam o lugar de fala!
Não é desculpa pra vc não pesquisar e tudo me questionar;
E nem quer dizer que eu sempre vou estar certa;
Eu não sou representativa,
prq como todas sou individual,só quero uma tentativa,
de ser a artista residual,
daquilo que podia ser,
tão incrível q é normal.
Prq pedir desculpas e lucrar,
falando como é dificil ser o padrão,
em vez de abrir espaço na patotinha do que é arte.
[…] é foda né”8Citação à um trecho de minha própria poesia “Sobre a nudez forte da fantasia, o manto diáfano da verdade”.
Nala Ayaba,
também conhecida como ‘’Nala.black.trava ©’’ (Ela / Dela), é multiartista com foco principal
em arte visual e poética. Tem 1,83 m de altura, é negra de pele clara, de ascendência indígena
perdida, tem cabelos ondulados com cachos abertos, monocelha, e olhos bem escuros. Tem lábios
bem pigmentados, mas antes de tudo isso, chega primeiro que é Travesti; e tudo isso impacta
diretamente sua produção.
Autor(es)
Nala Ayaba,
também conhecida como ‘’Nala.𝑏𝑙𝑎𝑐𝑘.𝑡𝑟𝑎𝑣𝑎 ©’’ (Ela / Dela), é multiartista com foco principal em arte visual e poética. Tem 1,83 m de altura, é negra de pele clara, de ascendência indígena perdida, tem cabelos ondulados com cachos abertos, monocelha, e olhos bem escuros. Tem lábios bem pigmentados, mas antes de tudo isso, chega primeiro que é Travesti; e tudo isso impacta diretamente sua produção.